Por Baltazar Lopes da Silva
Já foi levantado o problema. José Osório de Oliveira abordou o assunto. E sustentou “por intuição” que o crioulo de Cabo Verde é uma língua.
E o problema que filologicamente não tem importância transcendente. Relevo teria na geografia humana da cultura lusíada. Há certo ponto, no domínio da ciência linguística pura, em que a língua e dialecto são conceitos tangenciais. Quando o linguista abstrai de razões de ordem social e política, ambos são grupos de fenómenos de igual interesse. Já a aristocratização de dialectos até a categoria de línguas foge um pouco à análise linguística pura. Se razões de natureza política, social ou cultural – ou o prestígio literário, levam determinado dialecto a impor-se aos outros da mesma área de distribuição. Foram elas que no ocidente da Península produziram a supremacia do galego português (veículo de uma intensa literatura lírica), do dialecto da ilha-de-França sobre os outros falares do território francês, e do dialecto toscano (literariamente) sobre as outras linguagens da Itália.
É evidente que estas razões faltam a Cabo Verde. As próprias virtualidades da sua cultura apenas podem marcar (e é muito) uma nota de peculiaridade dentro do complexo luso-atlântico, mas não um movimento centrifugo de afirmação em língua. Para tal, necessárias serem certas condições. Isolamento político. Independência política. Emprego obrigatório do crioulo em documentos e repartições oficiais. Uso literário generalizado. E, além disso, há a acção terapêutica e constante do português, veículo de cultura acção que cada dia é mais presente com o derrame da instrução.
Note-se, todavia, que, intrinsecamente o crioulo de Cabo Verde tem mais condições para se afirmar em língua autónoma do que, por exemplo, o falar brasileiro. É que a linguagem brasileira está mais perto do português de Portugal, a força diferencial foi menor, por no seu processo formativo ter havido maior aportação do elemento metropolitano. Já no crioulo de Cabo Verde o choque foi maior, devido ao predomínio étnico do elemento afro-negro na miscigenação e ao carácter, possivelmente, menos impositivo da acção do metropolitano na vida Colonial. Consequências, a meu ver, do factor económico: - o elemento português menos poderoso economicamente em Cabo Verde, terra de limitados recursos agrários, do que no Brasil em que a casa-grande representa os grandes latifúndios e a monocultura, possíveis num regime profundamente escravocrata. De aí, ter havido em Cabo Verde maior contribuição dos grupos africanos e ser mais acentuado o aspecto patológico da evolução do reinol. É esta a razão, de resto já algures apontada, de mesmo a linguagem sertaneja do Brasil ser muito mais compreensível para um português da Metrópole do que o crioulo caboverdiano – e isto apesar de o dialecto das ilhas ser de estrutura nitidamente portuguesa, de tipos mórficos resultantes da simplificação do reinol, de léxico quase totalmente português.”
LOPES DA SILVA, Baltazar (1936), "Notas para o estudo da linguagem em Cabo Verde". Claridade, 2, p. 5 e 10
(Fim)
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