15.11.11

Cultura, Língua e Sociedade

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"Notas para o estudo da linguagem em Cabo Verde
Por Baltazar Lopes da Silva
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Que espécie de contribuição teriam trazido os afro-negos para a formação do crioulo de Cabo Verde?
Em que medida teriam agido as línguas africanas sobre o português?
O crioulo de Cabo Verde é uma língua nitidamente românica, portuguesa. Seu sistema morfológico resulta directamente de uma simplificação da morfologia do português. Seu léxico é quase totalmente português. O vocabulário africano deixou fraquíssimos vestígios, principalmente nas ilhas de barlavento; em Santiago é que se encontra maior número de vocábulos africanos, topónimos e nomes, comuns e mesmo assim em percentagem ínfima.
Os crioulos (linguagens negro-europeias) correspondem à miscigenação de tipos humanos. Para a formação do crioulo de Cabo Verde, sabemos que o português trouxe o seu vocabulário e sua gramática, que o afro-negro simplificou: - a este, em maior número, coube a acção patológica que modificou a linguagem, imprimindo-lhe certa feição.
Mas levanta-se um problema: - quais as causas que determinaram a acção do afro-negro?
Como observa Juret, não basta, para se determinar o verdadeiro sentido de uma lei, a simples verificação de tacto particular de, em certa época, um dado som ter evoluído para um outro, antes se torna investigar qual o princípio geral que originou essa modificação. Põe-se, para o crioulo de Cabo Verde, o problema de determinar-se o sentido em que teriam os africanos exercido a sua acção na patologia de reinol.
Ora, é preciso não perder de vista que os falares crioulos resultam das reacções de povos primitivos, na maior parte das vezes arrancados do seu habitat originário (como é o caso de Cabo Verde) perante uma língua estranha, veículo de uma cultura diferente. Todo o Crioulo é resultante de um choque de culturas. O determinar-se a contribuição ds afro-negros pressupõe estudar a sua mentalidade, a sua alma, a sua posição perante a Vida, numa palavra, os elementos formativos da sua magia, dos seus sistemas religiosos, da sua poesia do seu folklore, da sua força de criação mítica. São justamente estes estudos subsidiários que nos faltam na análise do problema linguístico caboverdiano. Ignoramos o que é que o afro-negro trouxe consigo quando veio para as ilhas colaborar na colonização. Nem mesmo podemos afirmar com segurança quais as áreas de cultura de onde provieram os stocks africanos. Apenas, parece-me, razões de ordem administrativa e a proximidade geográfica nos permitem aventar que o afro-negro que veio para Cabo Verde procede da área de cultura sudanesa ocidental. Não se estudou ainda, o que, com relativa pureza, sobrevive das culturas afro-negras na ilha de Santiago, nem se inventariaram nos arquivos aduaneiros do tempo do tráfico os pontos de partida e os focos de disseminação dos escravos africanos. Há todo um programa para aqueles que queiram fazer estes estudos – que seriam magnífico subsídio para a análise da linguística caboverdiana. Sobrevivências religiosas. Infiltrações, no catolicismo popular, de práticas religiosas Yorubanas. Folklore.
Há uma verificação linguística em Cabo Verde que me leva a aventar a existência de várias tradições linguísticas nos grupos afro-negros que colonizaram as ilhas. Por um lado, o crioulo caboverdiano constitui um grupo definido e solidário nas suas subdivisões. Todavia a acentuada diferenciação subdialectal não é suficientemente justificada pela insularidade da colónia, tanto mais havendo já hoje uma incontestável unidade social e psicológica no arquipélago. Tratando-se de uma terra antes desabitada (excepção feita para as hipóteses que podem levantar-se relativamente a migrações antigas dos jalofos), poderia parecer à primeira vista que a subdialectação se justificaria pelo simples factor geográfico, sem necessidade de se invocarem variadas proveniências dos elementos afro-negros, tanto mais faltando a estes o seu meio geográfico originário. Isto é, os afro-negros, arrancados do seu habitat, verem as suas tradições linguísticas perderem-se sob a acção niveladora da cultura. Contudo, apesar de ter sofrido alguns ataques, a velha concepção romanista de uma tradição linguística local não sai enfraquecida por razões de ordem geográfica. Como alega Michaelis [?], a tradição interessa como facto linguístico e não como fenómeno geográfico. As considerações de carácter geográfico que os linguistas introduzem nas suas construções resultam da comodidade que tal atitude oferece e da impossibilidade de encararmos os fenómenos linguísticos sem os ligarmos à ideia de espaço.
O crioulo caboverdiano sofreu, no seu processo evolutivo, a acção niveladora da cultura. Mas o próprio facto de a subdialectação ser mais acentuada do que seria lícito esperar, se atendermos que há em Cabo Verde factores de unidade de ordem política, social e até étnica, prova, a meu ver, a presença actuante das tradições linguísticas de que teriam sido portadores os núcleos colonizadores de proveniências várias trazidas pelo tráfico.
Para só citar um exemplo: - a abundância de alotropismos no crioulo caboverdiano. Creio que ela é consequência não só da acção constante, terapêutica da língua-mãi (que introduz formas que coexistem com as resultantes da evolução popular), mas ainda da solicitação alotrópica das variadas tradições linguísticas que actuaram nas ilhas.
Isto – sem deixar de reconhecer também, na base do alotropismo e do metaforismo crioulos, uma razão psicológica elementar. É-nos forçoso tomar em consideração a humanidade essencial do afro-negro, plasmador dos falares crioulos, e portador de certa poesia do maravilhoso decorrente da sua concepção de Vida. E a sua virgindade intelectual. E Mach tem uma observação lúcida quando compara a linguagem do primitivo à da criança. Esta, como o selvagem, dispõe de poucas palavras para exprimir as emoções que povoam o seu mundo. Por isso, fala poeticamente, por necessidade: qualquer semelhança o leva a transpor a significação das palavras. (...)" (sublinhado nosso)
LOPES DA SILVA, Baltazar (1936), "Notas para o estudo da linguagem em Cabo Verde".  Claridade, 2, p. 5 e 10.
PS: Alguns termos e expressões precisam de ser lidos dentro do contexto e da época em que o texto foi elaborado.
(tem continuação...)

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