13.11.11

Língua- mãi!

"Notas para o estudo da linguagem em Cabo Verde
Por Baltazar Lopes da Silva
I

A expansão ultramarina das nações europeias, especialmente das de língua romântica, determinou choques de culturas. No campo linguístico esse choque deu em resultado o aparecimento de falares novos.
Não tem sido uniforme o critério dos romanistas na determinação do processus de formação dos crioulos.
Alguns, como Schuchardt, Lucien Adam e P. Mayer, consideram os crioulos meros produtos da aplicação da gramática dos idiomas indígenas a um vocabulário europeu. Por seu lado Adolfo Coelho sustentou que os dialectos crioulos obedeceram, na sua formação, a uma acentuada tendência de simplificação gramatical, para facilitar o entendimento entre vencedores e vencidos, tendo na sua constituição essencial, como formas peculiares das línguas europeias influído muito pouco as particularidades gramaticais dos idiomas indígenas.
Esta conclusão de Adolfo Coelho, a meu ver única que corresponde à realidade do problema, atende aos dois factores básicos que informaram a constituição dos crioulos românicos: - simplificação gramatical e manutenção do carácter românico.
De facto, e como pretende Adolfo Coelho, temos de admitir uma fase inicial em que as circunstancias suscitadas pelo encontro de vencedores e vencidos e, em consequência, a necessidade de entendimento, determinaram o aparecimento de um sistema simplificado, constituído, exactamente, pelos elementos linguísticos que podiam obedecera este duplo requisito: - serem facilmente assimiláveis pelo povo inferior e terem a mobilidade suficiente para possibilitarem a comunicação dos grupos em presença. Deste modo, a formação dos dialectos crioulos, embora obedecendo as causas de ordem psicológica, resulta de uma necessidade prévia de carácter social. Reduziu-se a língua estranha nos dois domínios que mais directamente importavam às necessidades que provocaram à simplificação: - a morfologia e o léxico.

O exame do vocabulário dos crioulos permite-nos concluir que no sistema originário entraram principalmente termos que servissem à expressão de noções concretas e os tipos gramaticais necessários ao enquadramento dos vocábulos e à coordenação das ideias. Assim, os vocábulos e tipos mórficos adquiriram nos crioulos maior densidade e capacidade funcional, precisamente porque a redução vocabular e morfológica dos idiomas europeus fez com que se cometesse aos temos e morfemas sobreviventes o papel de traduzir ideias que naqueles dispõem de formas e tipos gramaticais próprios. Esta circunstância foi decisiva na abundância de construções perifrásticas e metafóricas, com as quais se procura atingir o sentido justo e designar a função que os vocábulos e tipos gramaticais correntes não podem exprimir. E essa redução coincide também com a tendência geral, notada por Meillet, de as línguas simplificarem o seu sistema morfológico quando se propagam em domínios novos, e com a lei da morfologia geral que estabelece e a eliminação progressiva das formas complicadas ou excepcionais, em proveito de formas simples e correntes.
Mas, constituído o novo falar, o crioulo, e lançado no domínio social que se destinava a servir, abriram-se todas as possibilidades de evolução.
Duas forças se encontraram em presença no desenvolvimento dos crioulos - uma agindo em sentido de conservação, outra no de inovação. A primeira determinou a manutenção dos tipos básicos que através do sistema nuclear dos crioulos, servem de definir a procedência destes falares e de perpetuar o seu carácter europeu, patenteada principalmente no domínio morfológico, essencial no conjunto dos aspectos distintivos das línguas, sendo certo que, como nota Terracher, o sistema morfológico caracteriza uma língua mais nitidamente que o léxico ou o desenvolvimento fonético.
Foi em virtude desta força conservadora que a identidade de origem tornou possíveis as grandes afinidades existentes entre os diferentes crioulos de cada grupo românico e que, por outro lado, ainda hoje se verifica o vivo carácter português de certos dialectos falados por populações que de há muito não estão ligadas politicamente a Portugal como sejam os de Java, Singapura, Ceilao, etc.
A manutenção da estrutura morfológica e, por isso, o elemento determinativo do critério a ser adoptado para se decidir se dado falar colonial deve ser considerado ou não um dialecto resultante das línguas europeias. Não basta, com efeito, a simples ocorrência de uma percentagem elevada de vocábulos de origem europeia para definir o carácter europeu dos dialectos ultramarinos pela mesma razão por que o albanês, por exemplo, não é língua românica, apesar de o seu léxico ser de grande parte românico.
O dualismo da força conservadora, concretizada na estabilidade dos tipos mórficos, e a solicitação inovadora, objectivada na evolução fonética, no enriquecimento vocabular e nos desenvolvimentos semânticos, tem uma das suas mais importantes expressões no seguinte: - enquanto nos crioulos o sistema morfológico se conserva fiel à sua estrutura primitiva, conservando das línguas europeias apenas os traços essenciais, determinativos da proveniência desses falares, nota-se, por um lado, uma aproximação fonética cada vez maior do estado fonético actual da língua-mãi, concretizada na abundância de formas divergentes, que representam, umas o aspecto fonético tradicional e outras a influência do reinol, e por outro lado assiste-se em certos dialectos a uma constante entrada de vocábulos, importados desta, entrada que irá avultando à medida que as populações indígenas vão estando mais em contacto com as metrópoles respectivas. (destaque nosso)
( tem continuação...)
LOPES DA SILVA, Baltazar (1936), "Notas para o estudo da linguagem em Cabo Verde".  Claridade, 2,  p. 5 e 10.

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